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Segurança hídrica: Políticas públicas e desafios atuais

A segurança hídrica é um dos pilares fundamentais para o desenvolvimento sustentável, a saúde pública e a estabilidade socioeconômica. No entanto, em pleno século XXI, milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo no Brasil, ainda enfrentam dificuldades para acessar água em quantidade e qualidade suficientes para atender às suas necessidades básicas. As mudanças climáticas, a poluição de mananciais, o crescimento urbano desordenado e a má gestão dos recursos hídricos agravam esse cenário, exigindo políticas públicas robustas, integradas e baseadas em evidências científicas.

A Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA, 2019a), diz que a Segurança Hídrica se refere à disponibilidade de água de qualidade e em quantidade suficiente para satisfazer as necessidades humanas, atividades econômicas e conservação de ecossistemas aquáticos, além disso, envolve gestão de riscos a que a população e o meio ambiente estão sujeitos relacionados a extremos de secas, cheias e falhas ou gestão ineficaz. Neste contexto, as políticas públicas têm papel central na regulação, planejamento e implementação de soluções que garantam a gestão eficiente da água.

A situação da segurança hídrica no Brasil

Apesar de o Brasil abrigar cerca de 12% da água doce superficial do planeta, sua distribuição é extremamente desigual, tanto espacial quanto temporalmente. A região Norte concentra mais de 70% da disponibilidade hídrica nacional, enquanto o Nordeste e o Sudeste convivem com escassez relativa e problemas de abastecimento em muitas localidades (ANA, 2019b). Além disso, segundo dados do Instituto Trata Brasil (2024), cerca de 32 milhões de brasileiros ainda não têm acesso à água tratada e mais de 90 milhões não possuem coleta de esgoto, o que compromete a saúde pública e contamina os corpos d’água.

A insegurança hídrica se expressa de forma mais aguda nas áreas periféricas dos grandes centros urbanos, nas comunidades rurais e nas terras indígenas, onde os serviços de abastecimento são frequentemente precários ou inexistentes. Em 2022, uma pesquisa do Instituto Trata Brasil revelou que o índice de perdas de água potável no sistema de distribuição chega aos 40% em várias capitais brasileiras, sinalizando ineficiência na gestão e grandes desafios estruturais.

Além das carências de infraestrutura, a segurança hídrica está cada vez mais ameaçada por eventos extremos associados às mudanças climáticas. O Brasil tem enfrentado secas históricas nos últimos anos, como a de 2014-2015 na região Sudeste e a de 2021 no Centro-Oeste e Sul, que afetaram o abastecimento urbano e a produção agroindustrial. Por outro lado, enchentes frequentes, como as que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024, expõem populações a riscos de desabrigamento, contaminação e destruição de infraestruturas críticas. São vários os autores na literatura que evidenciam que tais eventos tendem a se tornar mais frequentes e intensos nas próximas décadas, e isso amplia a urgência de políticas hídricas adaptativas.

 

Políticas públicas e marcos legais para segurança hídrica

O Brasil possui um dos mais avançados marcos legais de gestão de recursos hídricos, estruturado pela Lei nº 9.433/1997, conhecida como Lei das Águas, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH). Essa legislação consagrou princípios modernos como a gestão descentralizada e participativa, a cobrança pelo uso da água e o reconhecimento da bacia hidrográfica como unidade de planejamento. A criação dos Comitês de Bacia Hidrográfica e dos Planos de Recursos Hídricos são instrumentos importantes para garantir o uso racional e sustentável da água.

Outro avanço significativo e desafiador foi o Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 14.026/2020), que atualizou a legislação anterior e estabeleceu metas ambiciosas para universalizar o acesso à água e ao esgotamento sanitário até 2033. Essa legislação também prevê a regionalização dos serviços, o fortalecimento da regulação por agências estaduais e a ampliação dos investimentos privados no setor.

Além dessas legislações, há políticas específicas voltadas para regiões vulneráveis, como o Programa Água para Todos, voltado ao Semiárido, e o Programa Cisternas, cerca de 1,2 milhão de famílias já foram beneficiadas com tecnologias sociais que permitem o acesso à água para o consumo, a dessedentação animal e a produção de alimentos, abrangendo mais de 1,5 mil municípios em 21 estados (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO E ASSISTÊNCIA SOCIAL, FAMÍLIA E COMBATE À FOME). 

No entanto, apesar dos avanços legais e institucionais, a implementação dessas políticas ainda enfrenta desafios significativos. Faltam articulação entre os entes federativos, integração com políticas urbanas e ambientais, financiamento adequado e capacidade técnica nos municípios para elaborar e executar planos de segurança hídrica. Além disso, a ausência de dados atualizados e sistemas integrados de informação dificulta o monitoramento e a avaliação das ações em curso.

Desafios atuais para a segurança hídrica no Brasil

Entre os principais desafios para avançar na segurança hídrica no Brasil, destacam-se:

1. Governança fragmentada: a gestão hídrica ainda é marcada por uma divisão entre diferentes órgãos federais, estaduais e municipais, além da sobreposição com políticas de meio ambiente, saúde, desenvolvimento urbano e agricultura. Essa fragmentação prejudica a implementação de ações integradas e o planejamento de longo prazo. É necessário fortalecer os mecanismos de coordenação entre setores e níveis de governo, promovendo abordagens intersetoriais e baseadas em bacias hidrográficas.

2. Desigualdades territoriais: a cobertura dos serviços de abastecimento e saneamento é muito desigual entre regiões, estados e municípios. Os investimentos tendem a se concentrar nas áreas urbanas mais ricas, enquanto regiões rurais e periféricas continuam desassistidas. Superar essas desigualdades exige políticas redistributivas, financiamento público robusto e atenção especial às populações em situação de vulnerabilidade.

 

3. Mudanças climáticas: a variabilidade climática agrava tanto os riscos de escassez quanto de excesso de água. Para lidar com esse novo cenário, é urgente incorporar a adaptação climática nas políticas hídricas, com ações como a diversificação das fontes de abastecimento, a proteção de nascentes e aquíferos, o reuso de água, o aumento da eficiência nos sistemas de irrigação e a implantação de sistemas de alerta e resposta a desastres.

4. Poluição dos mananciais: o despejo de esgoto sem tratamento, o uso indiscriminado de agrotóxicos e fertilizantes, a mineração e o lançamento de resíduos industriais comprometem a qualidade da água em diversas bacias. A recuperação e proteção dos mananciais deve ser uma prioridade estratégica, com incentivos à agricultura sustentável, ao saneamento rural e à conservação de vegetação nativa.

5. Baixo investimento e dependência do setor privado: embora o novo marco legal busque ampliar o investimento no setor de saneamento, há preocupações sobre a priorização de lucros em detrimento da universalização dos serviços, além do avanço lento e preocupante. É fundamental assegurar que a regulação garanta o cumprimento de metas sociais e ambientais, e que os investimentos atendam também as áreas menos rentáveis, com o devido apoio público.

 

O papel da inovação e da sociedade civil

Para enfrentar esses desafios, a inovação tecnológica e a mobilização social têm papel central. Soluções como o reuso de água, a dessalinização e o uso da inteligência artificial podem ajudar a melhorar a gestão e gerenciamento de recursos hídricos.

A participação da sociedade civil, das organizações comunitárias e dos movimentos sociais é essencial para fortalecer o controle social sobre os serviços e pressionar por políticas mais inclusivas e transparentes. A educação ambiental também é fundamental para formar uma cultura de uso consciente da água e engajar a população na proteção dos recursos hídricos.

Cidades como São Paulo, Curitiba e Recife vêm adotando planos municipais de segurança hídrica, que integram ações de monitoramento, revitalização de rios urbanos, ampliação do saneamento e engajamento comunitário. Essas experiências mostram que, com vontade política e articulação institucional, é possível avançar mesmo diante de cenários adversos.

A segurança hídrica é um bem público essencial, cuja garantia depende de uma governança eficaz, da integração entre políticas, da justiça socioambiental e da valorização do conhecimento técnico e científico. O Brasil, com sua vasta disponibilidade hídrica e expertise institucional acumulada, tem plenas condições de se tornar uma referência em políticas de gestão da água. Para isso, será necessário romper com a lógica de respostas pontuais e emergenciais e adotar uma abordagem preventiva, inclusiva e baseada em dados.

Fortalecer a segurança hídrica é investir no futuro do país — na saúde das pessoas, na estabilidade econômica, na conservação ambiental e na justiça social. Diante dos múltiplos desafios do presente e das incertezas do clima, essa é uma agenda inadiável.

Referências

Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANAa). (2019): https://arquivos.ana.gov.br/pnsh/pnsh.pdf

Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANAb). (2019). ODS 6 no Brasil: visão da ANA sobre os indicadores: https://www.gov.br/ana/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/ods6/ods6.pdf

Instituto Trata Brasil. (2024). Coleta de esgoto sobe apenas 0,2 ponto percentual no país. Veja os melhores e os piores municípios destacados pelo Ranking do Saneamento 2024. São Paulo: https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2024/04/Release-Ranking-do-Saneamento-de-2024-TRATA-BRASIL-GO-ASSOCIADOS-V2.pdf

Instituto Trata Brasil. (2021). Brasil chega aos 40% de perdas de água potável. São Paulo: https://tratabrasil.org.br/brasil-chega-aos-40-de-perdas-de-agua-potavel/

Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Relatório do Programa Cisternas: https://www.gov.br/mds/pt-br/acoes-e-programas/acesso-a-alimentos-e-a-agua/programa-cisternas/resultados-e-avaliacoes